quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O Bispo D. Miguel da Silva. O "dono" da Foz do Douro.

Depois de dez anos de vivência em Roma como embaixador do Rei de Portugal, onde se tornou íntimo dos papas Médicis, D. Miguel da Silva regressou ao seu país, onde foi nomeado Bispo de Viseu pelo Rei D. João III, cargo que desempenhou até 1540, altura em que fugiu para Roma, fuga considerada pelo rei como de alta traição.


Quadro "Cristo em casa de Marta", da autoria do pintor Grão Vasco, encomendado pelo bispo de Viseu D. Miguel da Silva, no qual, segundo consta, o próprio bispo se fez retratar (rosto rodeado por um círculo). Esta obra está patente no Museu Grão Vasco em Viseu.

No período em que viveu inicialmente em Roma, entre 1515 e 1525, integrou-se perfeitamente na vida romana e criou grande amizade com importantes figuras da época, nomeadamente com o artista Miguel Ângelo. Humanista e poeta, tornou-se uma figura de primeiro plano na cultura e na política.

Na chegada a Portugal em 1525, com os benefícios eclesiásticos que lhe haviam sido concedidos pelo Papa, como o Mosteiro de Santo Tirso, muito cobiçado à época por outros homens da igreja e ao qual pertencia o Couto de S. João da Foz do Douro, fixou-se nesta freguesia lançando-se numa verdadeira campanha de obras, algumas delas bem importantes. Pode dizer-se que D. Miguel da Silva beneficiou e muito a Foz do Douro e o seu progresso.

Segundo descrição da época, à entrada do Douro alinhavam-se colunas de granito a meio do rio indicando o enfiamento da barra. Uma igreja de enorme cúpula avançava água dentro com fachada voltada para o mar. Mais adiante um torreão abobadado a servir de capela farol (ver artigo sobre a capela farol de S. Miguel o Anjo) ambas traçadas no mais puro estilo da Renascença italiana. Todo este aparatoso conjunto foi erguido, após 1527, por ordem do abade de Santo Tirso e Bispo de Viseu, D. Miguel da Silva, pelo seu arquiteto privativo, o italiano Francisco de Cremona. Diz-se que no vasto programa de restauração da Foz do Douro fundia-se o universo mental do renascimento com o novo mundo aberto pelos descobrimentos.

Em 1567 a corte mandou rodear a igreja com muralhas, criando-se assim o Forte de S. João Baptista da Foz do Douro, vulgo Castelo da Foz do Douro.


O Forte de S. João Baptista. Foto do óleo do pintor Artur Loureiro nos anos vinte do séc. XX. 

Mais tarde, em 1647, após um estudo do engenheiro-mor Lassart, foi destruído o “conventinho” beneditino, onde havia residido D. Miguel da Silva até 1540 e demolidas as abobadas e frente da fachada principal da igreja, cujo interior passou a ser o pátio da fortaleza.

A igreja Paroquial da Foz do Douro foi então construída no local onde actualmente se encontra. Consta que o rei D. João III terá doado do seu bolso seis mil cruzados para a construção da actual igreja, com a condição de poder demolir a existente dentro do castelo. Da anterior igreja resta a nave que em foto se reproduz.


Nave ainda existente da antiga Igreja da Foz do Douro

D. Miguel da Silva, destituído da nacionalidade portuguesa, pelo rei e dos poderes eclesiásticos que lhe haviam sido concedidos depois da fuga para Roma, ascendeu à dignidade cardinalícia em 2 de Dezembro de 1541, mas o vento da fortuna virou. De bispo rico tornou-se cardeal pobre, ficando dependente da generosidade do papa, recorrendo mesmo à colónia judaica para sobreviver. Mas nunca perdeu a fama de grande humanista, nem de escritor.


(Fonte: Revista Oceanos, da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – Junho de 1989)

Agostinho Barbosa Pereira




O Abade Moura, Pároco da Foz do Douro a partir de 1876 e durante catorze anos.

Pároco da Foz durante catorze anos e alguns meses, José dos Santos Ferreira de Moura, nasceu em S. Pedro da Cova, Gondomar, em 29 de abril de 1839.

Depois de uma breve passagem pelo Brasil, ainda muito novo e a convite de um tio residente no Rio de Janeiro, ingressou no Seminário do Porto, onde, dada a sua vocação para a vida eclesiástica, se ordenou Sacerdote. Inicialmente nomeado Capelão do Convento das Donas de Corpus Christi, em Vila Nova de Gaia, deixou posteriormente este cargo para, em substituição, assumir a Paróquia da Foz, lugar em que tomou posse três anos mais tarde, em 7/11 /1876, como Pároco efectivo.

Considerado um amigo e um protector dos enfermos e dos pobres, a quem socorria com o seu óbolo, visitava-os e assistia-os nas suas enfermidades.

Foi também um político. militante e dirigente local do Partido Regenerador, partido pelo qual foi eleito para o cargo de Procurador à Junta Geral do Distrito, pelos Concelhos de Gondomar e de Valongo, em 1871.

Esta actividade política veio trazer-lhe muitos problemas na Foz. Outra formação política tinha grande importância nesta Freguesia na altura, o Partido Progressista. Liderado por António Carneiro dos Santos (era proprietário do Chalet Suiço, no Passeio Alegre) este partido fazia constante "guerra" ao Abade Moura, mesmo dentro da Igreja, ou seja, nas Confrarias, ao ponto de em 1886 o tentarem impedir de realizar, pela primeira vez na Foz do Douro, a Procissão do Sagrado Coração de Jesus. A Mesa da Confraria do Santíssimo Sacramento, tendo sido dissolvida, foi substituída por uma Comissão Administrativa da facão progressista. O Presidente dessa Comissão fechou à chave, na Casa da Fábrica, todos os objectos pertencentes ao culto, incluindo até os bancos do altar nos quais se sentavam o celebrante e acólitos da Igreja, com o objectivo de entravar a realização da Procissão e das festividades. Isto não impediu que o Abade Moura realizasse as festividades e, de acordo com o que rezam escritos da época, foi um êxito.

Igreja Martiz de S. João da Foz do Douro

Homem culto e interessado no progresso e engrandecimento da Foz, foi fundador de duas importantes Colectividades da época, nesta Freguesia: a Associação Protectora de Socorros Mútuos da Foz do Douro, em 1877, e a Banda Marcial da Foz em 1883. Contudo, as rivalidades políticas levaram os seus opositores a fundarem, em 1879, a Associação de Beneficência de S. João da Foz, que mais tarde se veio a designar por Associação Fraternal de Socorros Mútuos. Estas Associações fundiram-se numa só, que passou a designar-se Associação de Socorros Mútuos da Foz e que foi extinta em 1977. Tinha a sua sede no edifício onde se encontra a Banda Marcial da Foz, na Rua Padre Luís Cabral, com quem já partilhava as instalações, até à data da extinção e do qual era proprietária.

Considerado um pregador fluente, o Abade Moura conseguia afirmar o seu talento e os seus vastos conhecimentos da Doutrina Cristã, apresentados aos fiéis de uma forma singela, mas elegante, que o tornava muito querido pelo auditório, que sempre atentamente o ouvia.

Foi aliás um desses sermões que veio a causar a sua morte. Em 22 de Maio de 1887, de regresso a casa, de um sermão na Capela de Nossa Senhora da Ajuda, em Lordelo do Ouro, sentiu um resfriado que se veio a converter numa pneumonia dupla que o vitimou em pouco mais de quinze dias. A sua morte, em 6 de Junho de 1887, repentina e prematura, foi muito sentida na Foz, especialmente pelos mais desfavorecidos a quem auxiliava com os seus poucos recursos. Diz-se que morreu pobre porque tudo o que tinha repartia pelos que mais necessitavam.

Colocou-se logo, com a sua morte, uma questão. Não havia, a cargo da Igreja, um lugar digno, no Cemitério, para ser sepultado. O seu adversário político principal, que era o Presidente da Junta na altura, António Carneiro dos Santos, colocou imediatamente à disposição o seu Jazigo para que o corpo do Abade Moura ali fosse colocado. Esta foi uma solução temporária pelo que, logo após a sua morte, a Junta reuniu e deliberou abrir uma subscrição pública para a construção de um Mausoléu onde perpetuadamente fosse sepultado.

Os amigos e companheiros do partido político do Abade Moura constituíram uma Comissão com o objectivo de também reunirem fundos para a construção de um Mausoléu. Dois irmãos do falecido, já depois de recolhidos alguns donativos pela Junta, entre os quais os dos seus membros e do Regedor (que foram os primeiros a contribuir) escreveram àquela Autoridade Administrativa informando que não aceitavam a homenagem da Junta, mas sim a homenagem da Comissão entretanto criada. Isto obrigou a que a Junta mandasse celebrar uma Missa por alma do Abade e no final da mesma distribuísse o valor dos donativos recolhidos pelos pobres.

A Comissão do Mausoléu do Abade Moura teve, porém, uma existência longa pois a construção daquele Jazigo não foi fácil, não por falta do dinheiro necessário, mas por razões políticas. Logo passado pouco tempo da sua existência, começaram os problemas com a Junta.

De acordo com esta cópia do desenho original a coluna foi feita como se vê, já "quebrada" 

Em dada altura a Junta teve de ser intimada pelo Tribunal Administrativo a dar despacho ao requerimento do representante da Comissão e dos irmãos do falecido, para a cedência do terreno para o Mausoléu, isto depois de um deputado do Parlamento, Dr. João Arroyo, ali ter denunciado a irregularidade da Junta da Foz. Este "travão" ao deferimento era justificado pela Junta baseando-se no artigo 17Q do Regulamento do Cemitério, que previa a indicação de alguém que, após a construção de um Jazigo, ficasse incumbida de velar pela sua conservação. Para se ter uma ideia do que se dizia na imprensa da época, sobre o assunto, transcrevo um extrato da notícia publicada pelo jornal semanal "O Globo", n9 1, ano 1, em 10/03/1889: "O Mausoléu - Ainda está bem patente na memória dos parochianos da Foz, a celebre questão do mausoléu do fallecido abbade Moura, que tanto pasto deu à intriga política. A junta de parochia, esquecendo-se simplesmente do parocho da freguezia, quiz expontaneamente erigir-lhe, por meio de uma subscripção publica, um monumento onde repousassem os restos mortaes do reverendo Moura, que tão cedo se finou, devido, talvez, mais á incarniçada lucta de uma política cheia de ódios e de rancores, do que ao trabalho de converter a heresia,... Mas, depressa se viu disputada, e a junta de parochia, querendo evitar que uma questão de sentimento geral, fosse convertida n'uma questão política, como já o era desde que appareceu uma commissão contendora a disputar a supremacia da junta, sob pretexto de que a commissão era regeneradora e a junta progressista. Esta desistiu do seu propósito, para evitar um odioso de que os amigos políticos do infeliz abbade já se não livraram. E fez bem a junta."

Pelo Relatório e Contas da Comissão, publicado em 1891, pela Imprensa Moderna, da Rua de Passos Manuel, 57, no Porto, poder-se-á também avaliar um pouco da atribulada vida daquele conjunto de pessoas. Inicialmente. Presidida, por Miguel do Canto e Castro, teve algumas substituições, por morte de membros, entre os quais o próprio Presidente. Terminou a sua acção em 1891 (a trasladação do cadáver foi efectuada em 26-12-1889, ainda antes da obra terminada), depois de ter arrecadado uma receita de quatrocentos e trinta e sete mil, quinhentos e setenta réis, de donativos, dos quais deixou, como saldo e depois de pagas todas as despesas com a construção, oito mil réis para serem distribuídos pelos pobres da Paróquia, na Missa de aniversário da morte do Abade.

Mais tarde, em 1925, constituiu-se outra Comissão - esta, ao que se sabe, sem ligações político-partidárias - para angariar fundos para construção de duas capelas. Uma para satisfazer a vontade de muitas pessoas da Foz, que pretendiam que o corpo do Abade Moura ficasse à vista de todos. Foi assim que, em 24-8-1929, concluída esta Capela, para lá foi trasladado o corpo, onde ainda hoje se encontra.

A outra capela, destinada ao culto religioso, veio a ser construída muito mais tarde, tendo sido benzida pelo Bispo do Porto em 31-10-1946 e inaugurada em 2 de Novembro do mesmo ano, pelo pároco da Freguesia, Padre Manuel Dias da Costa.

Capela no dia da sua inauguração, em 02-11-1946. Vemos o Bispo do Porto e ao seu lado esquerdo o Pároco da Foz à época.

O mausoléu encontra-se vago. Contudo, conta-se há muitos anos na Foz a história de que o Abade Moura “não quis ali estar”, pelo que “fez abanar o jazigo até partir a coluna” Deste mausoléu, constituído por um quadrado de mármore, com uma coluna grega partida, que simboliza interrupção prematura de uma vida, aqui se reproduz o desenho original, da autoria de João d'0liveira.

Não deixa de ser curioso ler um extracto de uma ata da reunião da Junta de Freguesia de há mais de cem anos. Nesta altura a imprensa publicava praticamente o texto completo das atas. Aqui apenas se transcreve, no grafismo original, a parte de maior interesse do teor da notícia publicada em 22 de Julho de 1887 no jornal «O Comércio do Porto»: "Junta de parochia da Foz. Reuniu no domingo passado a junta de parochia da Foz do Douro, sob a presidência do snr. António Carneiro dos Santos, estando presentes todos os vogaes. Deu-se conta do seguinte expediente: Do snr. barão de Paço Vieira, vice-presidente da commissão para erigir um mausoléu ao falecido abbade da Foz, acusando a recepção de um officio da junta. Com relação a um requerimento apresentado pêlos snrs. Joaquim dos Santos Ferreira Moura e António dos Santos Moura, pedindo que lhes fosse vendido o terreno necessário para construcção de um jazigo. Resolveu-se que os requerentes declarem quem fica obrigado ao cumprimento do disposto no regulamento do cemitério. O snr. presidente participou que, de harmonia com o resolvido, tinha ido, em companhia de dous vogaes e do snr. regedor, abrir a caixa que se collocou á porta da igreja para receber esmolas com applicação á construcção do jazigo para o fallecido abbade, e se verificou existir n 'ella a quantia de 265 réis, que em seguida distribuiu pelos pobres em suffragio da alma do finado.

Em 1987 foi constituída uma Comissão para realizar o programa da comemoração dos cem anos da morte do Abade Moura (Comissão a que tive a honra de pertencer), pelo Pároco, da época, Padre Orlando Ramos dos Santos,. Esta Comemoração, celebrada condignamente, culminou com uma Missa Solene na Igreja Matriz, na qual participou a Banda Marcial da Foz, que terá sido fundada pelo Abade Moura.

Há, porém, em minha opinião, ainda algo de importante a fazer em relação a esta eminente figura, que é de toda a justiça: atribuir o seu nome a uma artéria desta Freguesia.

Em 7 de Novembro de 1981, na qualidade de Vice-Presidente da Direção da Cooperativa de Habitação Económica de Nevogilde, apresentei uma proposta àquele órgão para que uma das praças, que irão resultar da construção do complexo habitacional daquela Cooperativa, na Ervilha, se passasse a designar "Praça Abade Moura". Esta proposta foi de resto completada por uma outra do meu amigo e companheiro da fundação e da Direcção daquela Cooperativa - Emanuel Rebelo - que na altura era Presidente, que propôs que a outra artéria se designasse "Praça Dr. Ramalho Fontes", em homenagem a outra figura ilustre da nossa Foz e que dela falarei num dos próximos números desta jornal. Estas propostas, aprovadas por unanimidade, foram posteriormente enviadas à Junta de Freguesia da Foz. Esta, por sua vez, submeteu-as à Assembleia de Freguesia. Foram, também, aprovadas por unanimidade por aqueles dois Órgãos Autárquicos.

Texto de Agostinho Barbosa Pereira publicado originalmente na edição n.º 13 do jornal O Progresso da Foz, jornal local, em Março de 1996.




Apontamento sobre o desaparecido Cine Foz

Inaugurado em Julho de 1907, com o nome "Au Rendez-Vous d´Êlite", surgiu na Foz do Douro, à Esplanada do Castelo, o seu primeiro e único cinema. 

O Cine Foz era o edifício que se vê ao fundo à esquerda. Fotografia original cedida pelo saudoso amigo Oliveira Maia.
Existia nesta freguesia o Teatro Vasco da Gama, sobre o qual pouco se sabe, sito à actual Rua do Teatro, onde também eram projectados alguns filmes mudos, acompanhados ao som de piano. Mas era fundamentalmente uma casa onde se faziam representações teatrais. 

É importante referir que o "Au Rendez-Vous d´Êlite" terá sido o segundo cinema da cidade do Porto. O primeiro, em 1906, foi o High-Life, inicialmente na Feira da Boavista (local da actual rotunda), posteriormente no Jardim da Cordoaria  e mais tarde, em 1908, na Batalha, no mesmo local onde foi construído em 1946 o actual Cinema Batalha. 

Inicialmente o "Au Rendez-Vous d´Êlite" não passava de um barracão, que nem átrio tinha, mas frequentado por pessoas abastadas, que viviam nesta zona, como ingleses, comerciantes de vinho do Porto ou pessoas ligadas à alta finança. 

Até ao aparecimento da energia eléctrica o cinema funcionava com a máquina a vapor, através de uma caldeira colocada nos terrenos anexos. A casa da caldeira era também residência do gerente do cinema.


Uns anos mais tarde, o seu edifício foi transformado, pelo Eng.º Xavier Esteves, passando a designar-se por Cine Foz. Tinha uma lotação de 370 espectadores. Foi demolido em 1967 para dar lugar aos aos prédios que existem naquele local.

Texto de Agostinho Barbosa Pereira, publicado em Janeiro de 2014 na sua página do Facebook: "A Nossa Foz do Douro".  


segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A Capela de Nossa Senhora da Luz de Gondarém, em Nevogilde, Porto

Construída a expensas dos moradores das imediações, com parte da pedra da demolida capela de Santo Elói, que anteriormente existia na freguesia de São Nicolau, (mesmo ao lado da igreja de São Francisco), foi aberta ao público em 1884. 

Da relação de despesas com a sua construção consta, como primeiro encargo, o custo de 170$000 a favor de Manuel Ferreira Leite de Carvalho pela remoção de pedra do Porto (local da capela de Santo Elói) para a Foz (Gondarém).

A Capela primitiva. Imagem provavelmente colhida no final de uma missa de Domingo
Em 1912, dois anos depois da implantação da República em Portugal, a Junta de Freguesia de Nevogilde, para desgosto dos moradores, mandou prender a pessoa encarregada das chaves e da limpeza da capela e impediu a sua reabertura, apesar da reacção do povo.

Em 18 de Abril de 1918 foi a capela devolvida ao culto, por decisão do governo de então, em decreto assinado por Sidónio Pais.

A 18 de Fevereiro de 1919, a autarquia de Nevogilde exigiu as chaves e encerrou novamente a capela. Em 24 de Agosto de 1922 foi desafectada ao culto e cedida, bem como o terreno anexo, àquela Junta de Freguesia para nela instalar a sede e o seu arquivo, e no terreno construir uma escola primária.

Transformada e desfigurada, com a construção de um primeiro andar, resultou, de aspecto, numa banal casa de habitação. 

Mais tarde foi esse edifício solicitado pela paróquia. Conseguida a pretensão em 1944 pelo Ministro das Finanças de então, foi este destruído e no mesmo local construída nova capela que ali existe ainda.

A Capela, tal como foi benzida em 1946 e como se encontra actualmente
Em 23 de Novembro de 1946, o então pároco de Nevogilde, Dr. Conceição e Silva procedeu à bênção da capela, tendo ali sido celebrada, no dia seguinte, uma missa pelo Bispo D. Agostinho de Jesus e Sousa. 

Dados extraídos do livro "São Miguel de Nevogilde" de D. Domingos de Pinho Brandão, Bispo Auxiliar do Porto. Edição da Igreja de Nevogilde, em 1983)

Agostinho Barbosa Pereira, em 01 de Junho de 2014.

domingo, 13 de outubro de 2019

Florbela Espanca. Poetisa Alentejana que outrora viveu na Foz do Douro

Florbela Espanca
Florbela de Alma Conceição Espanca, cujo nome literário pelo qual ficou conhecida é o de Florbela Espanca, nasceu a 08 de Dezembro de 1894, em Vila Viçosa no Alentejo e faleceu, de suicídio por sobre dose de barbitúricos, precisamente no dia do seu 36.º aniversário, em 08 de Dezembro de 1930, em Matosinhos, na casa onde vivia com o terceiro e último marido, o médico Manuel Lage.

Apesar de uma vida curta legou-nos um importante património literário.

Em Agosto de 1921, já a viver com o homem que iria ser o seu segundo marido, António José Marques Guimarães, alferes miliciano da Artilharia C da Guarda Nacional Republicana, veio de Matosinhos para a Foz do Douro, residir no Forte de S. João Baptista, vulgo Castelo da Foz, onde António Guimarães prestava serviço.


Contraiu matrimónio, em 03 de Julho de 1921, após o divórcio com o primeiro marido Alberto Monteiro. O casamento foi celebrado no posto n.º 1 da segunda Conservatória do Registo Civil do Porto, que na época funcionava no número 1034 da Rua Central, mais tarde designada Rua do Padre Luís Cabral.


Uma imagem, de outrora, da entrada do Forte de S. João Baptista da Foz do Douro, ao tempo em que tinha ainda guarnição militar

No seu quarto, naquele edifício militar, com janela virada para o mar, escreveu um dos seus conhecidos poemas, integrado na publicação “Livro de Sóror Saudade”, intitulado "Da minha janela".


                                        
Foi no Castelo da Foz, durante uma festa, que veio a conhecer o seu terceiro marido, Doutor Manuel Lage, Subdelegado de Saúde de Matosinhos, cidade a onde regressou para casar, religiosamente, em 08 de Dezembro de 1925, na Igreja do Bom Jesus e na qual viveu até à data do seu falecimento.

Nesta imagem, editada em postal nos inícios do sec. XX, podemos ver como seria o Castelo da Foz na época em que foi residência de Florbela 

Mas foi António Guimarães o grande amor da sua vida. Dos muitos escritos que lhe dedicou, reproduzidos no livro “Perdidamente, correspondência amorosa 1020-1925” editado pela Câmara Municipal de Matosinhos, destaco este:

“Os nossos mimos, a nossa intensidade, as nossas carícias são só nossas; no nosso amor não há cansaços, não há fastios, meu pequenino adorado! Como o meu desequilibrado e inconstante coração d´artista se prende a ti”

Deixo aqui ainda um poema da autoria de Miguel Veiga dedicado a Florbela Espanca:

NA VARANDA DE FLORBELA


Aqui cantaste nua.
Aqui bebeste a planície, a lua,
e ao vento deste os olhos a beber.
Aqui abandonaste as mãos
a tudo o que não chega a acontecer.

Aqui vieram bailar as estações e com elas tu bailaste. 
Aqui mordeste os seios por abrir, fechaste o corpo à sede
das searas, no lume de ti própria te queimaste.
                                            
(Miguel Veiga - 1949. Livro Ostinato Rigore/Epitáfios)


Fontes: Diversas publicações incluindo "Perdidamente, Correspondência amorosa 1920/1925", edição da Câmara Municipal de Matosinhos.

Agostinho Barbosa Pereira, em 01 de Janeiro de 2012.




sábado, 12 de outubro de 2019

Um pouco de uma narrativa sobre Nevogilde, publicada em 1862, com complemento em outros dados .


Num artigo publicado no semanário ilustrado, "Archivo Pittoresco", Volume V, em 1862, cujos editores e proprietários eram Castro e Irmão & C.ª com sede na Rua da Boa-Vista, ao Palácio do Conde de Sampaio, em Lisboa, o articulista inicia o seu trabalho referindo que o lugar de Nevogilde era formoso de sítio, pitoresco dos arredores e sadio de ares.

Mas antes de continuar as referências a este escrito vou, servindo-me de outras publicações, dar uma ideia como terá surgido Nevogilde.

Fez parte do Julgado de Bouças e é referido como Lovygildus, nome de origem germânica, nas inquirições de 1258 criadas a mando de D. Afonso III. Nestas inquirições, a vila de Nevogilde é citada como tendo à época, dezassete casais, com cerca de seis desabitados.

Quando o Julgado de Bouças foi extinto, devido à criação do concelho com o mesmo nome, em 1835, Nevogilde passou a pertencer aquele concelho em conjunto com as freguesias que mais tarde constituíram, e constituem, o concelho de Matosinhos.

Um relato datado de 1839 dava como presentes em Nevogilde 30 fogos e 137 almas.


Em Novembro de 1895, depois da construção da estrada da Circunvalação, a freguesia de Nevogilde passou a fazer parte do concelho do Porto, em conjunto com as restantes quinze freguesias, que o constituem.


Ainda segundo a narrativa com que iniciei este texto, aquele local, situado no Litoral do Minho, entre S. João da Foz do Douro e a povoação de Matosinhos, era pobre de importância mas levava a palma às povoações suas vizinhas.

Ali se pode ler que a torre da sua Igreja Paroquial, bem como as demais casas do "lugarejo" eram vistas de longe entre as verdes copas do arvoredo, os prados de pura esmeralda e fechados na banda Leste por pinheirais viçosos na coroa das suas colinas.

As cordilheiras de vegetação florida estendiam-se para Norte e Sul, na direcção de Leça da Palmeira e de S. João da Foz.

A Oeste desdobrava-se a planície do mar que não cessava de balbuciar queixas com gemidos sobre os seus amplos areais.

Escreveu o autor o que ali se via, nas tardes de Junho a Agosto: Manadas de bois alimentando-se nos lameiros, os guardadores dormindo à sombra das árvores, o lavrador ocupado em algum trabalho rústico.

Mais escreveu que se olhasse para o mar, enxergava a pequena vela branca que levava o pescador rumo à Póvoa, ou a Leça da Palmeira, e na linha do horizonte via algum solitário navio velejando para S. João da Foz.

Dos relatos citados naquele escrito sobre residentes em Nevogilde, destaco duas referências. A duas mulheres que o articulista explica serem mãe e filha, ambas família de um antigo capitão de navios, cujo alcunha era o "catraieiro", que gostava de dormir o seu último sono debaixo de uma lage da Igreja Paroquial.

Igreja de S. Miguel de Nevogilde

O Domingos, filho de uma viúva que durante o período de invasão de Napoleão Bonaparte, conhecido como "o tempo dos Franceses", se refugiara com o filho, ainda pequeno, naquela aldeia fugindo assim à morte que o marido, cabo do exército, recebeu dos Franceses.


Há ainda uma outra referência que aqui quero deixar por me parecer interessante.


No relatório datado de 1758, o Abade Manoel da Silva Pereira, dando respostas aos inquéritos feitos aos párocos e que constituem ainda o arquivo “Memórias Paroquiais”, escreveu, quanto à pergunta se esta localidade tinha porto de mar, informou que não tinha. Que havia um sítio na parte Norte chamado Selgueiras, que em meia maré ali surgiam barcos pequenos, que devido à braveza do mar não podiam entrar nos seus portos. E outro sítio na parte Sul, chamado Carreiro, onde em toda a maré entravam e aportavam os barcos.

Nota do autor do blogue:

Apesar de ter nascido na Foz do Douro, conheço bem Nevogilde, freguesia à qual estou bastante ligado por ali ter vivido, no Largo de Nevogilde, de 1976 a 1987.

Agostinho Barbosa Pereira, em 12 de Outubro de 2019.   


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Um pouco sobre quem foi o Padre Luís Cabral

O Padre Luís Gonzaga Pereira Cabral, que deu nome à Rua do Padre Luís Cabral, anteriormente designada por Rua Central (e anteriormente ainda, Rua Direita), nasceu no número 901 daquela artéria da Foz do Douro, em Outubro de 1866.

O Padre Luis Cabral
Seus pais, Maria Emília da Conceição Ribeiro Coelho e Constantino António do Vale Pereira Cabral, fidalgo cavaleiro da Casa Real e comendador de Cristo, embora vivendo na Rua das Flores, na baixa do Porto, tinham casa na Foz do Douro onde durante anos passavam o mês de Outubro.

Luís Cabral, depois de ter passado a infância entre a rua das Flores e a rua Central, foi aos nove anos para o Colégio de Campolide, em Lisboa, onde iniciou a sua formação como jesuíta. 

Esteve depois em Toulose, França formando-se em filosofia. E entre 1894 e 1899, fez ali também o seu curso de Teologia. 

Teve muita actividade, após o seu regresso a Portugal cinco anos mais tarde. Com a implantação da República, em 1910, surgiram as expulsões dos jesuítas. O Padre Luís Cabral exilou-se então na Bélgica, durante cinco anos. 

O prédio (na cor amarela) é a casa, na Rua do Padre Luís Cabral, onde nasceu e viveu alguns anos o Padre.

Mais tarde, rumou ao Brasil, onde fundou, na Baía, um colégio. Faleceu em Junho de 1939, naquela cidade brasileira, após prolongada doença.

Deixou um vasto legado literário publicado, entre livros, folhetos, discursos e ainda algumas composições dramáticas.

Agostinho Barbosa Pereira (texto e imagem) em 15 de Março de 2014.

Resumida história de um movimento na Foz do Douro, há cerca de 41 anos, com o escritor Rebordão Navarro.

A minha convivência com o escritor António Rebordão Navarro começou, nos inícios dos anos setenta, no café Moreira, à Rua Senhora da Luz, ainda que o conhecesse há muito tempo antes.

Era um frequentador assíduo daquele café, muitas vezes acompanhado da esposa, saudosa D. Virgínia, uma das três filhas do senhor Adrião que morava na Rua de S. Bartolomeu, julgo.

Acabei por começar a tomar parte numa “tertúlia” que tinha lugar, de quando em vez, em casa do Pimentel, na Rua de Cândida Sá de Albergaria, onde, para além de Navarro, se juntavam; o Branco, médico pediatra, que vivia da Rua do Faial; o meu amigo e companheiro Júlio Amorim (já há muito falecido) e outros,  cujos nomes não me ocorrem.

Após a revolução de Abril começaram a surgir em algumas freguesias do Porto movimentos com vista à “tomada” das juntas de freguesia com a intenção de as colocar democraticamente ao serviço das populações. No caso de Ramalde, soube-se que o grupo, liderado por um homem chamado Reis, tomou a Junta de Freguesia de assalto instalando-se com funções executivas, lugares e pelouros distribuídos.

Também na Foz do Douro se criou um grupo, com objectivo idêntico, encabeçado por António Rebordão Navarro, composto pelos já citados: Branco, Pimentel, Júlio Amorim e eu. Por convite de Navarro também se juntou a este grupo Joaquim Picarote (há muito falecido) que vivia na Rua do Farol e havia sido um entusiasta de várias iniciativas na Foz do Douro, nomeadamente os Cortejos do Traje de Papel integrados nas festas a S. Bartolomeu que se realizam anualmente, em Agosto,  nesta freguesia.

Edifício sede da Junta de Freguesia da Foz do Douro

Porem, a ideia de Rebordão Navarro, com a qual todos concordamos, não era a de se tomar a Junta de Freguesia por assalto, mas sim legitimados através da assinatura de residentes na freguesia. E assim, cada um fez circular exemplares de papel azul com vinte e cinco linhas, para a recolha de assinaturas. Não posso precisar quantas assinaturas colhemos, mas recordo-me que o volume de folhas era grande. Foram certamente milhares. O seguinte passo foi o da entrega no antigo Governo Civil do Porto, do abaixo assinado. Solicitada a audiência viemos a ser recebidos, não pelo Governador, visto que não havia ainda sido nomeado pelo Governo Provisório, mas pelo Secretário, Dr. Januário Nunes, a quem estava cometida, por lei, a função de substituição e que foi muito atencioso para o com o nosso grupo, mas apenas se limitou a ouvir-nos e a receber os papéis, com a promessa de que os entregaria ao próximo governador. Informou-nos que não dispunha de poderes para nomear qualquer Comissão Administrativa nas Juntas de Freguesia.

Algum tempo depois tive a oportunidade de conversar com o Dr. Mário Cal Brandão, que estava indicado e veio a tomar posse, em Setembro de 1974, como Governador Civil do Porto, a quem dei conhecimento das nossas diligências cuja intenção era a de gerirmos a Junta de Freguesia da Foz do Douro democraticamente. Contudo este informou-me que sabia da intenção do Governo em instruir os novos governadores para que nomeassem um representante de cada partido (PCP/PS/PPD) nas freguesias, com vista à constituição de Comissões Administrativas até às Eleições Autárquicas. Assim veio a acontecer, com excepção da Freguesia de Ramalde, onde permaneceu, embora nomeado, o grupo a que já me referi e que exerceu funções até às primeiras Eleições Autárquicas que se realizaram em finais de 1976.

Gorou-se assim a ideia do nosso movimento, encabeçado por António Rebordão Navarro e criado especificamente para a democratização da autarquia local, que permanecia com um executivo cujo presidente tinha mais de vinte anos de mandato e que se chamava Álvaro Gomes.

Rebordão Navarro era nessa altura militante do MDP/CDE. Em eleição autárquica posterior chegou a candidatar-se à Junta de Freguesia da Foz do Douro pela CDU, mas acabou por renunciar ao lugar.

Tudo isto aconteceu antes de eu iniciar funções, após concurso, na Junta de Freguesia da Foz do Douro, onde trabalhei vinte e oito anos. Resta-me dizer que durante os anos em que trabalhei naquela autarquia e em acções da Associação O Progresso da Foz, da qual fui um dos fundadores e também dirigente, do Orfeão da Foz do Douro, onde exerci o cargo de presidente da Direcção durante doze anos, ou de outras actividades em que tomei parte, como a Feira de Artesanato da Foz do Douro, tive muitos contactos com António Rebordão Navarro, com quem tive sempre a melhor relação, apesar da crítica (justa) que me fez, numa das crónicas que escreveu no Jornal de Notícias, porque eu, enquanto responsável pela exposição retrospectiva de S. Bartolomeu, que realizei no Castelo da Foz em Agosto de 1991, ter omitido uma das realizações que ele Rebordão Navarro havia levado a efeito, em meados dos anos oitenta, enquadrada nas festas a S. Bartolomeu e designada “Jogos Florais”. Mas isso não provocou qualquer problema entre nós, apresentadas que foram as devidas desculpas.

António Rebordão Navarro deixou-me (e certamente a muitos que privaram com ele)  saudades, não só no aspecto pessoal, como no literário. Ainda que este, nas muitas obras que nos legou, permaneça vivo para sempre.

António Rebordão Navarro, poeta e ficcionista, nasceu na Foz do Douro a 1 de Agosto de 1933. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, exerceu advocacia no Porto. Secretariou e dirigiu a revista literária Bandarra, fundada por seu pai, o escritor Augusto Navarro. Foi co-director da revista de poesia Notícias do Bloqueio, e em 1975 dirigiu a Biblioteca Pública Municipal do Porto. Depois da poesia, estreou-se com As Três Meninas e Outros Poemas (1952), a que se seguiram O Mundo Completo (1955), Os Animais Humildes (1956), Aqui e agora (1961) e 27 Poemas (1988) — enveredou pela ficção narrativa a partir de Romagem a Creta (1964). Com Um Infinito Silêncio (1970) obteve o Prémio Alves Redol e ao seu romance Mesopotâmia (1984) foi atribuído o Prémio Internacional Miguel Torga. Publicou, ainda, o romance O Parque dos Lagartos (1982). O seu livro A Praça de Liége (1988) foi distinguido com o Prémio Literário Círculo de Leitores.

Publicou ainda, entre outras obras, a antologia Poetas Escolhem Poetas (1992).

Faleceu a 22 de Abril de 2015, na sua casa, sita à rua do Passeio Alegre, na Foz do Douro.

Casa onde viveu António Rebordão Navarro na Rua do Passeio Alegre, frente ao Jardim com o mesmo nome.

Para a cooperativa Sociedade Portuguesa de Autores, a quem António Rebordão Navarro havia doado a sua casa em 2010, este "foi uma figura sempre activa na vida cultural e cívica do Porto", tendo esta entidade criado um prémio literário com o seu nome.

Agostinho Barbosa Pereira, em 30 de Maio de 2015.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A Banheira de S. João da Foz

Encontramos a partir do séc. XVIII, em várias publicações, referências à banheira da Foz. Mas é no Album de Costumes Portuguezes, edição das Livrarias Aillaud e Bertrand (Paris/Lisboa), publicado em 1881, que à Banheira é dedicada uma página que, para além do desenho de M.Macedo, é descrita num excelente texto do escritor Ramalho Ortigão como uma “mulher robusta e vigorosa” , como proveniente “… de uma estirpe de outras banheiras, e constitue pelos seus caracteres heriditários uma casta distincta …” sendo que “…. sem esse privilégio selectivo, de nascença, nenhuma mulher tomaria por offício dar banhos, passando oito ou nove horas por dia, durante quatro meses do anno, mettida no mar até ao peito”

E completava ainda o autor do livro As Praias de Portugal que a sua diferença se impôs “ … pelo trajo, pelas attitudes, pela expressão physionomica, pelo sorriso, em que o vermelho vivo das gengivas e o branco pérola dos dentes lembra uma frescura de guelra e a respiração salgada cheirando a sargaço, pelo olhar límpido e profundo …”. Pelos vistos também muito alegres, porque “ … de madrugada, ao armar das barracas, quando ellas, accordadas com os primeiros massaricos prateados que debicam a salsugem da maré, entoam em coro de sopranos uma das muitas barcarolas locaes, uma aguda palpitação de poesia festival e triumphadora preenche o ar …”

Confessava o escritor ter sido a banheira Anna da Luz “ … a alegria para o meu coração inquieto, e o contentamento para a minha alma resignada”

Também Eduardo Sequeira, na sua obra À Beira Mar, de 1889, escreveu que a banheira era “ … serviçal em extremo e sabe, com uma arte especial captivar a simpatia de todos, das crianças a quem anima, da rapasiada com quem confraternisa alegremente, e dos velhos cercando-os de considerações e respeitos, prodigalisando-lhes cuidados e confortos”

O Banheiro. (Desconhece-se a data desta foto)

Ainda que Ramalho Ortigão referisse na citada publicação que o ofício de dar banhos se prolongava por quatro meses do ano, no seu livro As Praias de Portugal, escreveu: “no principio da estação, em Agosto, começavam a chegar à Foz os banhistas. Muita gente vinha do Porto de madrugada, tomava banho e regressava à cidade. Este serviço era em grande parte feito por carroções, um dos mais extraordinários inventos do espírito portuense, applicado à locomoção”

Segundo o escritor, “ o carroção era um pequeno predio, com quatro rodas, puxado por uma junta de bois. Além das famílias que iam à Foz de carroção, havia as pessoas que iam em burros. Ao pé de Sobreiras parava tudo para desaguar o gado e para os homens comerem. Ninguém fazia o trajecto de ida e volta à Foz em menos de seis a oito horas, compreehendido o tempo do banho”

A Estrada da Foz. Desenho de LLonch, 1887, do álbum Imagens do Porto Oitocentista, edição da C.M.Porto 

Aos carroções seguiram-se os chas-à-bancs e desde que estes entraram na carreira da Foz, partindo do Carmo e da Porta Nobre o movimento dos banhistas aumentou extraordinariamente e a vida nas praias da Foz do Douro, na opinião de Ramalho Ortigão, entraram na sua fase moderna

Depois dos chas-à-bancs surgiu o americano, carro puxado a cavalos ou mulas. Este meio de transporte, segundo o citado escritor, converteu em pouco tempo a Foz num bairro do Porto, isto naturalmente pela substancial redução do tempo que levava a fazer o percurso

 Imagem da praia e casario da Rua da Praia anterior à construção da Rua Coronel Raul Peres

Consta que os banheiros da Foz do Douro festejavam o fim da época balnear, por altura da Romaria a S. Bartolomeu, uma das mais importantes festividades que se realizava a norte. Adornavam o corpo com algas e outros adereços de origem marinha e desfilavam pela praia em alegre brincadeira. Inicialmente esta festividade confinava-se à zona da areia. Mais tarde passou a fazer-se também pelos arruamentos junto à praia

Figurantes, em 1948, na brincadeira que se realizava na praia pelo S. Bartolomeu.(foto oferecida pelo saudoso amigo S. Oliveira Maia)

É de crer que este festejo terá estado na origem do Cortejo do Traje de Papel, que ocorre num Domingo próximo de 24 de Agosto, dia consagrado ao Santo mártir. Talvez este seja único no mundo, no seu género, em que os seus figurantes se vestem de papel e percorrem várias artérias da freguesia culminando no mar, onde as roupas se desfazem num banho considerado por alguns como “banho que vale por sete”. Ao cortejo de S. Bartolomeu dedicarei proximamente um trabalho neste blogue

Participantes do quadro alusivo ao livro As Praias de Portugal, em desfile no cortejo do traje de papel em 1991. Tema: Os Escritores Portugueses.

Para terminar, transcrevo os três primeiros parágrafos do capítulo dedicado à Foz do Douro, do livro As Praias de Portugal:

“ Foz! Saudosa Foz! Residência querida da minha infância tão afastada já – ai de mim! – d´estes annos duros! Com que terno prazer que eu te saúdo, sempre que te avisto, ou penso em ti!

Estamos bem mudados ambos – velha amiga! – tu do que foste, eu do que era!

No tempo em que eu ia de chapéu de palha e de bibe, à tarde, apanhar conchinhas na costa, pela mão de minha avó, tu eras grave, simples, burgueza, recolhida e silenciosa como uma horta em pleno campo”.

Notas do autor do texto:

Como natural da Foz do Douro, residente fora desta freguesia há mais de vinte anos, faço minhas as palavras de Ramalho Ortigão, com as devidas diferenças. Uma delas é que não ia pela mão de minha avó à praia, porque infelizmente já não conheci nenhuma das duas. Mas ia pela mão de minha mãe, ainda que a Foz já não fosse, nesse tempo, “recolhida e silenciosa”.

Alguns extractos de textos referenciados foram transcritos de modo original.

O livro referido, da autoria de Ramalho Ortigão, tem o título: " As Praias de Portugal, Guia do Banhista e do Viajante" editado pela Porto Livraria Universal em 1875.

Agostinho Barbosa Pereira, em 17 de Agosto de 2012.       

Coisas que se escrevem