Encontramos a partir do séc. XVIII, em várias publicações, referências à banheira da Foz. Mas é no Album de Costumes Portuguezes, edição das Livrarias Aillaud e Bertrand (Paris/Lisboa), publicado em 1881, que à Banheira é dedicada uma página que, para além do desenho de M.Macedo, é descrita num excelente texto do escritor Ramalho Ortigão como uma “mulher robusta e vigorosa” , como proveniente “… de uma estirpe de outras banheiras, e constitue pelos seus caracteres heriditários uma casta distincta …” sendo que “…. sem esse privilégio selectivo, de nascença, nenhuma mulher tomaria por offício dar banhos, passando oito ou nove horas por dia, durante quatro meses do anno, mettida no mar até ao peito”
E completava ainda o autor do livro As Praias de Portugal que a sua diferença se impôs “ … pelo trajo, pelas attitudes, pela expressão physionomica, pelo sorriso, em que o vermelho vivo das gengivas e o branco pérola dos dentes lembra uma frescura de guelra e a respiração salgada cheirando a sargaço, pelo olhar límpido e profundo …”. Pelos vistos também muito alegres, porque “ … de madrugada, ao armar das barracas, quando ellas, accordadas com os primeiros massaricos prateados que debicam a salsugem da maré, entoam em coro de sopranos uma das muitas barcarolas locaes, uma aguda palpitação de poesia festival e triumphadora preenche o ar …”
Confessava o escritor ter sido a banheira Anna da Luz “ … a alegria para o meu coração inquieto, e o contentamento para a minha alma resignada”
Também Eduardo Sequeira, na sua obra À Beira Mar, de 1889, escreveu que a banheira era “ … serviçal em extremo e sabe, com uma arte especial captivar a simpatia de todos, das crianças a quem anima, da rapasiada com quem confraternisa alegremente, e dos velhos cercando-os de considerações e respeitos, prodigalisando-lhes cuidados e confortos”
O Banheiro. (Desconhece-se a data desta foto) |
Ainda que Ramalho Ortigão referisse na citada publicação que o ofício de dar banhos se prolongava por quatro meses do ano, no seu livro As Praias de Portugal, escreveu: “no principio da estação, em Agosto, começavam a chegar à Foz os banhistas. Muita gente vinha do Porto de madrugada, tomava banho e regressava à cidade. Este serviço era em grande parte feito por carroções, um dos mais extraordinários inventos do espírito portuense, applicado à locomoção”
Segundo o escritor, “ o carroção era um pequeno predio, com quatro rodas, puxado por uma junta de bois. Além das famílias que iam à Foz de carroção, havia as pessoas que iam em burros. Ao pé de Sobreiras parava tudo para desaguar o gado e para os homens comerem. Ninguém fazia o trajecto de ida e volta à Foz em menos de seis a oito horas, compreehendido o tempo do banho”
A Estrada da Foz. Desenho de LLonch, 1887, do álbum Imagens do Porto Oitocentista, edição da C.M.Porto
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Aos carroções seguiram-se os chas-à-bancs e desde que estes entraram na carreira da Foz, partindo do Carmo e da Porta Nobre o movimento dos banhistas aumentou extraordinariamente e a vida nas praias da Foz do Douro, na opinião de Ramalho Ortigão, entraram na sua fase moderna
Depois dos chas-à-bancs surgiu o americano, carro puxado a cavalos ou mulas. Este meio de transporte, segundo o citado escritor, converteu em pouco tempo a Foz num bairro do Porto, isto naturalmente pela substancial redução do tempo que levava a fazer o percurso
Consta que os banheiros da Foz do Douro festejavam o fim da época balnear, por altura da Romaria a S. Bartolomeu, uma das mais importantes festividades que se realizava a norte. Adornavam o corpo com algas e outros adereços de origem marinha e desfilavam pela praia em alegre brincadeira. Inicialmente esta festividade confinava-se à zona da areia. Mais tarde passou a fazer-se também pelos arruamentos junto à praia
Figurantes, em 1948, na brincadeira que se realizava na praia pelo S. Bartolomeu.(foto oferecida pelo saudoso amigo S. Oliveira Maia) |
É de crer que este festejo terá estado na origem do Cortejo do Traje de Papel, que ocorre num Domingo próximo de 24 de Agosto, dia consagrado ao Santo mártir. Talvez este seja único no mundo, no seu género, em que os seus figurantes se vestem de papel e percorrem várias artérias da freguesia culminando no mar, onde as roupas se desfazem num banho considerado por alguns como “banho que vale por sete”. Ao cortejo de S. Bartolomeu dedicarei proximamente um trabalho neste blogue
Participantes do quadro alusivo ao livro As Praias de Portugal, em desfile no cortejo do traje de papel em 1991. Tema: Os Escritores Portugueses. |
Para terminar, transcrevo os três primeiros parágrafos do capítulo dedicado à Foz do Douro, do livro As Praias de Portugal:
“ Foz! Saudosa Foz! Residência querida da minha infância tão afastada já – ai de mim! – d´estes annos duros! Com que terno prazer que eu te saúdo, sempre que te avisto, ou penso em ti!
Estamos bem mudados ambos – velha amiga! – tu do que foste, eu do que era!
No tempo em que eu ia de chapéu de palha e de bibe, à tarde, apanhar conchinhas na costa, pela mão de minha avó, tu eras grave, simples, burgueza, recolhida e silenciosa como uma horta em pleno campo”.
Notas do autor do texto:
Como natural da Foz do Douro, residente fora desta freguesia há mais de vinte anos, faço minhas as palavras de Ramalho Ortigão, com as devidas diferenças. Uma delas é que não ia pela mão de minha avó à praia, porque infelizmente já não conheci nenhuma das duas. Mas ia pela mão de minha mãe, ainda que a Foz já não fosse, nesse tempo, “recolhida e silenciosa”.
Alguns extractos de textos referenciados foram transcritos de modo original.
O livro referido, da autoria de Ramalho Ortigão, tem o título: " As Praias de Portugal, Guia do Banhista e do Viajante" editado pela Porto Livraria Universal em 1875.
Agostinho Barbosa Pereira, em 17 de Agosto de 2012.
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